Olho para as apertadas frestas da veneziana que traspassa os
solitários feixes de luz por uma sala tão escura e vazia como minha alma. Vejo
as partículas de poeira dançarem pela quase onírica trajetória iluminada e
lembro de como é podre e suja essa cidade. Esse lugar fede, mas não apenas pela
urina dos mendigos e pelo lixo das ruas, mas o cheiro vem também das pessoas e
de suas almas lúgubres e incrustadas de todos os tipos de devassidão, ganância
desenfreada e pecado.
Uma suave garoa cai vagarosamente pelos prédios como diáfanos
brilhos ao refletir as luzes artificiais que tentam, desesperadamente, deixar a
noite um pouco menos sombria e lôbrega. No entanto, isso não passa de pura e
simples hipocrisia, pois de nada adianta mascarar a decadência de uma cidade
que se voltou para a podridão sórdida e a tristeza absoluta.
Tristeza essa que exala dos edifícios cinzentos e da paisagem
nublada na cidade que nunca dorme. São Paulo tem insônia e isso se mostra nos
rostos melancólicos e pálidos das pessoas que passam apenas a parasitar pelas
ruas e em suas próprias vidas. Suas rotinas monótonas sempre apagam as alegrias
momentâneas e cadentes dos prazeres fúteis e, por isso mesmo, viciantes. Tentam
esquecer, embriagados na luxúria sem sentido, o que a cidade da garoa é, mas Sampa
é o que é... inexoravelmente.
Essa é a verdade!
Pego meu maço de Hollywood do bolso e acendo um cigarro.
Nunca gostei de fumar realmente, mas esse vício tem me acompanhado desde a
Guerra. Era uma das poucas coisas que fazia minhas mãos pararem de tremer.
Minhas lembranças me trazem delírios de sons de disparos e
explosões arrancadas violentamente do passado e vem novamente toda aquela
angustia e pânico em que eu vivia, ou melhor, em que eu sobrevivia na Europa à
poucos anos atrás.
Não sinto mais o sabor mentado de Lucky Strike, mas mesmo
assim fumar trás certa calmaria aos meus nervos novamente levando aquele tempo
de triunfo e tormento para o lugar mais obscuro da minha alma... guardando bem
fundo.
Apesar do forte cheiro esfumaçado no ar e de minhas
divagações sobre as mamórias da Itália eu sinto primeiro o perfume dela
chegando. Depois eu escuto os passos de saltos finos e minha atenção se volta para
a porta do meu escritório. Agora, de volta ao presente, posso até ver a sombra
dela por debaixo da porta.
Antecipo o som das batidas na porta...
- Entre! – digo – A porta está aberta.
Então a mulher mais linda que eu já conheci entra em minha
escura e vazia sala de trabalho. Parece até mesmo que a luz entra cordialmente
junto aos seus cabelos vermelhos que, de alguma forma mágica, brilham como
chamas tão ardentes que quase sinto o lugar esquentar pelo calor.