sexta-feira, 22 de maio de 2015

Sampa Noir


Olho para as apertadas frestas da veneziana que traspassa os solitários feixes de luz por uma sala tão escura e vazia como minha alma. Vejo as partículas de poeira dançarem pela quase onírica trajetória iluminada e lembro de como é podre e suja essa cidade. Esse lugar fede, mas não apenas pela urina dos mendigos e pelo lixo das ruas, mas o cheiro vem também das pessoas e de suas almas lúgubres e incrustadas de todos os tipos de devassidão, ganância desenfreada e pecado.
Uma suave garoa cai vagarosamente pelos prédios como diáfanos brilhos ao refletir as luzes artificiais que tentam, desesperadamente, deixar a noite um pouco menos sombria e lôbrega. No entanto, isso não passa de pura e simples hipocrisia, pois de nada adianta mascarar a decadência de uma cidade que se voltou para a podridão sórdida e a tristeza absoluta.
Tristeza essa que exala dos edifícios cinzentos e da paisagem nublada na cidade que nunca dorme. São Paulo tem insônia e isso se mostra nos rostos melancólicos e pálidos das pessoas que passam apenas a parasitar pelas ruas e em suas próprias vidas. Suas rotinas monótonas sempre apagam as alegrias momentâneas e cadentes dos prazeres fúteis e, por isso mesmo, viciantes. Tentam esquecer, embriagados na luxúria sem sentido, o que a cidade da garoa é, mas Sampa é o que é... inexoravelmente.
Essa é a verdade!
Pego meu maço de Hollywood do bolso e acendo um cigarro. Nunca gostei de fumar realmente, mas esse vício tem me acompanhado desde a Guerra. Era uma das poucas coisas que fazia minhas mãos pararem de tremer.
Minhas lembranças me trazem delírios de sons de disparos e explosões arrancadas violentamente do passado e vem novamente toda aquela angustia e pânico em que eu vivia, ou melhor, em que eu sobrevivia na Europa à poucos anos atrás.
Não sinto mais o sabor mentado de Lucky Strike, mas mesmo assim fumar trás certa calmaria aos meus nervos novamente levando aquele tempo de triunfo e tormento para o lugar mais obscuro da minha alma... guardando bem fundo.
Apesar do forte cheiro esfumaçado no ar e de minhas divagações sobre as mamórias da Itália eu sinto primeiro o perfume dela chegando. Depois eu escuto os passos de saltos finos e minha atenção se volta para a porta do meu escritório. Agora, de volta ao presente, posso até ver a sombra dela por debaixo da porta.
Antecipo o som das batidas na porta...
- Entre! – digo – A porta está aberta.

Então a mulher mais linda que eu já conheci entra em minha escura e vazia sala de trabalho. Parece até mesmo que a luz entra cordialmente junto aos seus cabelos vermelhos que, de alguma forma mágica, brilham como chamas tão ardentes que quase sinto o lugar esquentar pelo calor.