Jessica
Jones é uma série da parceria Marvel e Netflix sobre uma ex-heroína fracassada
que tenta reconstruir sua vida depois de um trauma muito profundo onde busca
consolidar sua nova carreira de detetive particular. Sentindo-se culpada por um
passado terrível que abala seu
equilíbrio e afeta profundamente sua autoestima tornando-a muito fraca para
bebidas e desenvolvendo uma personalidade sínica ao melhor estilo de Humphrey
Bogart em Casa Blanca (1942). De fato a série usa muitos elementos dos antigos
filmes Noir mostrando que uma estória de super heróis pode ser bem peculiar
para as atuais produções tanto televisivas como cinematográficas.
A
mesma idéia diferenciada se mostra na história em quadrinhos de Brian Michael
Bands e Michael Gaydos chamada Alias onde a série se baseou. Assim, em meio a
uma Marvel cheia de exageros heróicos, Bands mostrou um roteiro afiado que
buscava um tema mais personalista e cheio de palavrões com a ajuda de Gaydos
que tinha um traço mais sóbrio e realista com trejeitos do cotidiano que não
condizia com que a Marvel Comics fazia na época, mas também não poderia ser
totalmente descartado.
Aproveitando,
então, o fim do Comics Code Authority que censurava os quadrinhos desde a
década de 50 a editora resolveu criar seu próprio código de classificação
etária para suas revistas. Inspirada no selo Vertigo da editora concorrente é
criado em 2001 o selo Marvel Max onde poderia comportar quadrinhos mais adultos
como a nova Jessica Jones e antigos personagens como Luke Cage, Viúva Negra e
posteriormente o Justiceiro poderiam migrar para um selo que comportassem
melhor suas estórias e enredos mais urbanos e profundos.
Entretanto,
ao mesmo tempo que temos uma atmosfera mais madura e realista em Alias com, até
mesmo alguns elementos Noir, Bands se esforça muito para colocar sua nova
personagem Jessica Jones dentro do Universo Marvel recorrendo a aparições
diretas do Capitão América, Miss Marvel e do Demolidor, por exemplo. Chegando a
criar um passado de Jessica como a super-heroína Safira parte integrante dos
Vingadores e digna de um uniforme apertado e brega como eram na época. Nessas
estórias de origem o desenhista Michael Gaydos chega a perfeição emulando os
traços dos antigos mestres Steve Ditko e Jack Kirby que desenhavam vários
heróis Marvel e fizeram muito sucesso nas décadas de 60, 70 e 80.
Foi
nesse contexto que Jessica Jones surgiu na série Alias, a primeira da Marvel
Max, com sua narrativa detetivesca, lindas capas de David Mack onde Bands e
Gaydos puderam mostrar que é possível fazer uma estória adulta e profunda
tentando fugir dos clichês de super heróis, mas que mesmo assim não precisaria
criar todo um universo a parte criticando os quadrinhos mainstrem da época e ao
mesmo tempo participando do mesmo sendo quase autoral e marginal.
Michael
Bands teve a sensibilidade de criar uma personagem feminina forte sem cair no
péssimo atalho de colocá-la masculinizada e ainda abordando temas pertinentes
como o feminismo, mas sem levantar uma bandeira ou fazer da personagem uma
militante, o que poderia encontrar resistência dos leitores e exageros. Jessica
apenas reage com uma intolerância natural ao sexismo em várias situações
infelizes do nosso cotidiano como na memorável cena que a detetive se vê
questionando revistas ditas escritas para o publico feminino que contem uma
forte expressão da ditadura da beleza e obviamente conta com o desagrado de
Jones e uma auto reflexão.
O
feminismo é assim abordado suavemente e por vezes com mais profundidade e força
bem como a personificação de Jessica sendo uma mulher forte de liberdade sexual
e trajando roupas (ou em posições) nada sensualizadas que, além de sua
importância e representatividade, acaba por render narrativas ótimas que fariam
Bands ser reconhecido como um ótimo escritor e fez Alias ganhar dois Harveys e
ser indicada a dois Eisners.
No
entanto, é apenas no arco final da história em quadrinhos, Púrpura, que somos
apresentados ao maior antagonista de Jessica Jones, Zebediah Killgrave.
Personagem já antigo da editora Marvel e vilão do Demolidor, apesar do poder
absurdo de convencer as pessoas de fazer o que ele quer, Homem Púrpura nunca
tinha sido muito bem aproveitado até esse momento.
Killgrave
acaba se tornando a personificação do homem machista em um relacionamento
abusivo onde seu próprio poder faz uma alegoria para o domínio que alguns
homens exercem sobre a mulher nesse tipo deturpado de relação adquirindo
controle de tudo sobre a parceira sempre a diminuindo e ditando suas ações.
Talvez
por ser uma mulher, Melissa Rosemberg, a desenvolvedora, ou simplesmente por
vir depois, assim em outro contexto e com mais reflexão, a série da Netflix
teve uma maestria muito maior em abordar os Relacionamentos Abusivos na figura
do vilão e desenvolveu o Homem Púrpura, aqui interpretado pelo brilhante David
Tennant, com muito mais profundidade e qualidade.
Deixou-se
de lado a metalinguagem e quebra da quarta parede que Killgrave faz nos
quadrinhos, responsável pela critica clara as estórias de super heróis, junto
com a pele púrpura para entrar um vilão que vai crescendo no decorrer do
desenvolvimento da série dando uma sensação cada vez mais claustrofóbica e
angustiante sem ao menos aparecer nos primeiros episódios.
Até
nisso a Netflix acerta mostrando lentamente todo o trauma de Jessica, muito bem
interpretada pela Krysten Ritter, que sua paranoia se justifica e aumenta a
medida que percebe seu antagonista por traz de todo enredo tornando uma ótima
oportunidade para mostrar o abalo psicológico que um relacionamento abusivo
pode causar nas mulheres até mesmo anos depois do ocorrido. É aqui que
entendemos muito da personalidade da protagonista e torna esse o principal de
muitos acertos da adaptação sobre a obra original.
Tanto
nos quadrinhos como na série do canal de streaming o Homem Púrpura era um
personagem muito difícil de trabalhar, pois foi criado em meio um período muito
exagerado e até infantil dos quadrinhos. Nada de errado nisso, mas esse não era
o tom que se queria agora em uma estória mais madura. Ainda mais com o sucesso
avassalador de Vincent D’Onofrio ao interpretar o Rei do Crime Wilson Fisk em
Demolidor, a série imediatamente anterior da parceria Marvel e Netflix.
Mais
que contratar o ótimo Tennant o roteiro tinha que ser muito bem pensado e a
resposta foi toda essa atmosfera criada para revelar o vilão e a forma
inteligente, perigosa e esguia que ele se mostrou na série até seu desfecho
inexorável nos últimos episódios e que também serviu para mostrar ainda mais um
tema feminista, o empoderamento da personagem principal.
Jessica
Jones fragilizada por tudo que Killgrave a fez passar, sem autoestima e com
pecados do passado em que ela acreditava ser a responsável, tinha que enfrentar
seu antagonista apesar de todo o pavor que ele a fazia sentir. Não era apenas
um desafio de lutar contra o vilão, mas uma reflexão de seu próprio papel no
mundo e um enfrentamento de todos seus medos internos, pois o Homem Púrpura não
apenas a violentou, como é melhor explicado nos quadrinhos, mas mais bem
trabalhado na série de como isso perturba Jessica. Mas como a personagem mesmo
diz, ela foi abusada não somente fisicamente, mas muito psicologicamente.
Essa
talvez seja a sensibilidade trazida pela Rosenberg na estória e com certeza o
melhor da série em comparação aos quadrinhos. Falar sobre abusos, violência a
mulher e estupro de uma maneira tão respeitosa e não apelativa para ter
audiência. Se precisarmos falar de estupro, se isso é fundamental tanto na
estória como no contexto atual, falaremos de todas as formas possíveis, mas com
maturidade e sem querer apenas chocar o público levianamente.
Esse
é muito dos acertos da Netflix bem como sua relação com Luke Cage que poderia
ser mais uma armadilha para desviar o foco da narrativa, mas acabou por se tornar
um de seus pontos fortes. O personagem interpretado por Mike Colter é antigo
nos quadrinhos, bem mais que Jessica e poderia a primeiro momento tomar pra si
as atenções ou pior ainda, poderia acabar pro representar o velho clichê do
cavaleiro que salva a mocinha, mas esse não é o caso. Jessica, apesar se seus
sérios problemas, não é uma mocinha indefesa que precisa ser salva. No entanto,
Cage poderia cair no vicio de narrativa contrário que muitas estórias com
mulheres fortes acaba tendo. Cage poderia ser a mocinha em perigo salva pela
paladina Jessica Jones, mas isso também não ocorre, pois seria um erro terrível
dada a força e invulnerabilidade não apenas física pelos poderes de Luke, mas
pelo seu próprio caráter. Logo a série o trata como deve ser, ou seja, um
personagem coadjuvante. Nem salva Jéssica e nem é resgatado por ela. Apenas
está ali pela sua importância na trajetória da heroína sem ser diminuído e sem
eclipsar a protagonista em mais uma mostra da maestria dos autores da série.
Luke
Cage é importante, mas não o responsável pela emancipação de Jessica Jones.
Outros
personagens da série são igualmente profundos e bem equilibrados como a
advogada Jeri Hogarth interpretada pela Carie-Anne Moss que faz uma mulher
poderosa e homoafetiva, mas mesmo assim é passível de defeitos. Tem uma amante
traindo sua esposa e com certeza tem sérios problemas com as relações de poder
chegando a se mostrar superior e humilhando suas parceiras. Logo, de certa
forma, também mostra outra faceta de um relacionamento abusivo.
Talvez
seja em relacionamentos abusivos o tema principal da série, pois mais
personagens aparecem relacionados a esse contexto em todas as suas formas, como
os vizinhos de Jessica, o policial Simpson que é interpretado por Wil Traval e que
também é um personagem inspirado nos quadrinhos chamado Bazooka (vilão do
Demolidor), mas principalmente a personagem de Rachel Taylor chamada Patricia
“Trish” Walker.
Embora
Trish também seja uma personagem distinta das revistas da Marvel a personagem
parece muito inspirada na melhor amiga de Jessica nas HQs a Miss Marvel da
época chamada Carol Denvers, pois ambas são personagens fortes e muito
determinadas, mas Trish parece ter algum histórico de um antigo relacionamento
também abusivo que ela deve ter vencido em algum momento do passado e talvez
tenha colaborado com sua personalidade marcante e cheia de iniciativa.
Ao
mostrar tantas mulheres nesses terríveis relacionamentos, na maioria das vezes
como vitimas, mas algumas vezes, mesmo que poucas, também como controladoras
ambiciosas e condutoras de abusos como o caso da personagem de Moss que apesar
de ser uma perseguidora de justiça tem sua visão nublada pelo próprio ego
inflado e corrompido pelo pequeno poder que possui.
Logo
percebemos que a profundidade que o quadrinista Brian Michael Bends criou nos
28 números da revista Alias foi profundamente ampliado pela desenvolvedora Melissa Rosenberg na série
Jessica Jones da Netflix trazendo uma obra impar que se não foi melhor produzida
que seu irmão mais velho Demolidor, tem temas a assuntos muito mais maduros,
diferenciados e importantes para o público.
A
representatividade que Jessica Jones trás não é simplesmente em ter uma super
heroína forte, não sensualizada ou pior, masculinizada em meio a cultura pop
nerd que já mostrou ser muito preconceituosa e machista. Se fosse apenas isso a
série já seria impar na cultura pop, mas a serie da parceria Marvel e Netflix
teve a sensibilidade de trabalhar temas tão pesados e complicados de abordar
usando uma narrativa bem colocada e muito bem elaborada por parte dos
desenvolvedores e produtores tal qual foi em 2001 com a criação do selo Marvel
Max e a obra original Alias.
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