quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Alias: Jessica Jones - Feminismo e os Relacionamentos Abusivos



Jessica Jones é uma série da parceria Marvel e Netflix sobre uma ex-heroína fracassada que tenta reconstruir sua vida depois de um trauma muito profundo onde busca consolidar sua nova carreira de detetive particular. Sentindo-se culpada por um passado terrível  que abala seu equilíbrio e afeta profundamente sua autoestima tornando-a muito fraca para bebidas e desenvolvendo uma personalidade sínica ao melhor estilo de Humphrey Bogart em Casa Blanca (1942). De fato a série usa muitos elementos dos antigos filmes Noir mostrando que uma estória de super heróis pode ser bem peculiar para as atuais produções tanto televisivas como cinematográficas.
A mesma idéia diferenciada se mostra na história em quadrinhos de Brian Michael Bands e Michael Gaydos chamada Alias onde a série se baseou. Assim, em meio a uma Marvel cheia de exageros heróicos, Bands mostrou um roteiro afiado que buscava um tema mais personalista e cheio de palavrões com a ajuda de Gaydos que tinha um traço mais sóbrio e realista com trejeitos do cotidiano que não condizia com que a Marvel Comics fazia na época, mas também não poderia ser totalmente descartado.
Aproveitando, então, o fim do Comics Code Authority que censurava os quadrinhos desde a década de 50 a editora resolveu criar seu próprio código de classificação etária para suas revistas. Inspirada no selo Vertigo da editora concorrente é criado em 2001 o selo Marvel Max onde poderia comportar quadrinhos mais adultos como a nova Jessica Jones e antigos personagens como Luke Cage, Viúva Negra e posteriormente o Justiceiro poderiam migrar para um selo que comportassem melhor suas estórias e enredos mais urbanos e profundos.
Entretanto, ao mesmo tempo que temos uma atmosfera mais madura e realista em Alias com, até mesmo alguns elementos Noir, Bands se esforça muito para colocar sua nova personagem Jessica Jones dentro do Universo Marvel recorrendo a aparições diretas do Capitão América, Miss Marvel e do Demolidor, por exemplo. Chegando a criar um passado de Jessica como a super-heroína Safira parte integrante dos Vingadores e digna de um uniforme apertado e brega como eram na época. Nessas estórias de origem o desenhista Michael Gaydos chega a perfeição emulando os traços dos antigos mestres Steve Ditko e Jack Kirby que desenhavam vários heróis Marvel e fizeram muito sucesso nas décadas de 60, 70 e 80.
Foi nesse contexto que Jessica Jones surgiu na série Alias, a primeira da Marvel Max, com sua narrativa detetivesca, lindas capas de David Mack onde Bands e Gaydos puderam mostrar que é possível fazer uma estória adulta e profunda tentando fugir dos clichês de super heróis, mas que mesmo assim não precisaria criar todo um universo a parte criticando os quadrinhos mainstrem da época e ao mesmo tempo participando do mesmo sendo quase autoral e marginal.
Michael Bands teve a sensibilidade de criar uma personagem feminina forte sem cair no péssimo atalho de colocá-la masculinizada e ainda abordando temas pertinentes como o feminismo, mas sem levantar uma bandeira ou fazer da personagem uma militante, o que poderia encontrar resistência dos leitores e exageros. Jessica apenas reage com uma intolerância natural ao sexismo em várias situações infelizes do nosso cotidiano como na memorável cena que a detetive se vê questionando revistas ditas escritas para o publico feminino que contem uma forte expressão da ditadura da beleza e obviamente conta com o desagrado de Jones e uma auto reflexão.



O feminismo é assim abordado suavemente e por vezes com mais profundidade e força bem como a personificação de Jessica sendo uma mulher forte de liberdade sexual e trajando roupas (ou em posições) nada sensualizadas que, além de sua importância e representatividade, acaba por render narrativas ótimas que fariam Bands ser reconhecido como um ótimo escritor e fez Alias ganhar dois Harveys e ser indicada a dois Eisners.
No entanto, é apenas no arco final da história em quadrinhos, Púrpura, que somos apresentados ao maior antagonista de Jessica Jones, Zebediah Killgrave. Personagem já antigo da editora Marvel e vilão do Demolidor, apesar do poder absurdo de convencer as pessoas de fazer o que ele quer, Homem Púrpura nunca tinha sido muito bem aproveitado até esse momento.
Killgrave acaba se tornando a personificação do homem machista em um relacionamento abusivo onde seu próprio poder faz uma alegoria para o domínio que alguns homens exercem sobre a mulher nesse tipo deturpado de relação adquirindo controle de tudo sobre a parceira sempre a diminuindo e ditando suas ações.
Talvez por ser uma mulher, Melissa Rosemberg, a desenvolvedora, ou simplesmente por vir depois, assim em outro contexto e com mais reflexão, a série da Netflix teve uma maestria muito maior em abordar os Relacionamentos Abusivos na figura do vilão e desenvolveu o Homem Púrpura, aqui interpretado pelo brilhante David Tennant, com muito mais profundidade e qualidade.
Deixou-se de lado a metalinguagem e quebra da quarta parede que Killgrave faz nos quadrinhos, responsável pela critica clara as estórias de super heróis, junto com a pele púrpura para entrar um vilão que vai crescendo no decorrer do desenvolvimento da série dando uma sensação cada vez mais claustrofóbica e angustiante sem ao menos aparecer nos primeiros episódios.
Até nisso a Netflix acerta mostrando lentamente todo o trauma de Jessica, muito bem interpretada pela Krysten Ritter, que sua paranoia se justifica e aumenta a medida que percebe seu antagonista por traz de todo enredo tornando uma ótima oportunidade para mostrar o abalo psicológico que um relacionamento abusivo pode causar nas mulheres até mesmo anos depois do ocorrido. É aqui que entendemos muito da personalidade da protagonista e torna esse o principal de muitos acertos da adaptação sobre a obra original.
Tanto nos quadrinhos como na série do canal de streaming o Homem Púrpura era um personagem muito difícil de trabalhar, pois foi criado em meio um período muito exagerado e até infantil dos quadrinhos. Nada de errado nisso, mas esse não era o tom que se queria agora em uma estória mais madura. Ainda mais com o sucesso avassalador de Vincent D’Onofrio ao interpretar o Rei do Crime Wilson Fisk em Demolidor, a série imediatamente anterior da parceria Marvel e Netflix.
Mais que contratar o ótimo Tennant o roteiro tinha que ser muito bem pensado e a resposta foi toda essa atmosfera criada para revelar o vilão e a forma inteligente, perigosa e esguia que ele se mostrou na série até seu desfecho inexorável nos últimos episódios e que também serviu para mostrar ainda mais um tema feminista, o empoderamento da personagem principal.
Jessica Jones fragilizada por tudo que Killgrave a fez passar, sem autoestima e com pecados do passado em que ela acreditava ser a responsável, tinha que enfrentar seu antagonista apesar de todo o pavor que ele a fazia sentir. Não era apenas um desafio de lutar contra o vilão, mas uma reflexão de seu próprio papel no mundo e um enfrentamento de todos seus medos internos, pois o Homem Púrpura não apenas a violentou, como é melhor explicado nos quadrinhos, mas mais bem trabalhado na série de como isso perturba Jessica. Mas como a personagem mesmo diz, ela foi abusada não somente fisicamente, mas muito psicologicamente.
Essa talvez seja a sensibilidade trazida pela Rosenberg na estória e com certeza o melhor da série em comparação aos quadrinhos. Falar sobre abusos, violência a mulher e estupro de uma maneira tão respeitosa e não apelativa para ter audiência. Se precisarmos falar de estupro, se isso é fundamental tanto na estória como no contexto atual, falaremos de todas as formas possíveis, mas com maturidade e sem querer apenas chocar o público levianamente.
Esse é muito dos acertos da Netflix bem como sua relação com Luke Cage que poderia ser mais uma armadilha para desviar o foco da narrativa, mas acabou por se tornar um de seus pontos fortes. O personagem interpretado por Mike Colter é antigo nos quadrinhos, bem mais que Jessica e poderia a primeiro momento tomar pra si as atenções ou pior ainda, poderia acabar pro representar o velho clichê do cavaleiro que salva a mocinha, mas esse não é o caso. Jessica, apesar se seus sérios problemas, não é uma mocinha indefesa que precisa ser salva. No entanto, Cage poderia cair no vicio de narrativa contrário que muitas estórias com mulheres fortes acaba tendo. Cage poderia ser a mocinha em perigo salva pela paladina Jessica Jones, mas isso também não ocorre, pois seria um erro terrível dada a força e invulnerabilidade não apenas física pelos poderes de Luke, mas pelo seu próprio caráter. Logo a série o trata como deve ser, ou seja, um personagem coadjuvante. Nem salva Jéssica e nem é resgatado por ela. Apenas está ali pela sua importância na trajetória da heroína sem ser diminuído e sem eclipsar a protagonista em mais uma mostra da maestria dos autores da série.
Luke Cage é importante, mas não o responsável pela emancipação de Jessica Jones.
Outros personagens da série são igualmente profundos e bem equilibrados como a advogada Jeri Hogarth interpretada pela Carie-Anne Moss que faz uma mulher poderosa e homoafetiva, mas mesmo assim é passível de defeitos. Tem uma amante traindo sua esposa e com certeza tem sérios problemas com as relações de poder chegando a se mostrar superior e humilhando suas parceiras. Logo, de certa forma, também mostra outra faceta de um relacionamento abusivo.



Talvez seja em relacionamentos abusivos o tema principal da série, pois mais personagens aparecem relacionados a esse contexto em todas as suas formas, como os vizinhos de Jessica, o policial Simpson que é interpretado por Wil Traval e que também é um personagem inspirado nos quadrinhos chamado Bazooka (vilão do Demolidor), mas principalmente a personagem de Rachel Taylor chamada Patricia “Trish” Walker.
Embora Trish também seja uma personagem distinta das revistas da Marvel a personagem parece muito inspirada na melhor amiga de Jessica nas HQs a Miss Marvel da época chamada Carol Denvers, pois ambas são personagens fortes e muito determinadas, mas Trish parece ter algum histórico de um antigo relacionamento também abusivo que ela deve ter vencido em algum momento do passado e talvez tenha colaborado com sua personalidade marcante e cheia de iniciativa.
Ao mostrar tantas mulheres nesses terríveis relacionamentos, na maioria das vezes como vitimas, mas algumas vezes, mesmo que poucas, também como controladoras ambiciosas e condutoras de abusos como o caso da personagem de Moss que apesar de ser uma perseguidora de justiça tem sua visão nublada pelo próprio ego inflado e corrompido pelo pequeno poder que possui.
Logo percebemos que a profundidade que o quadrinista Brian Michael Bends criou nos 28 números da revista Alias foi profundamente ampliado pela  desenvolvedora Melissa Rosenberg na série Jessica Jones da Netflix trazendo uma obra impar que se não foi melhor produzida que seu irmão mais velho Demolidor, tem temas a assuntos muito mais maduros, diferenciados e importantes para o público.

A representatividade que Jessica Jones trás não é simplesmente em ter uma super heroína forte, não sensualizada ou pior, masculinizada em meio a cultura pop nerd que já mostrou ser muito preconceituosa e machista. Se fosse apenas isso a série já seria impar na cultura pop, mas a serie da parceria Marvel e Netflix teve a sensibilidade de trabalhar temas tão pesados e complicados de abordar usando uma narrativa bem colocada e muito bem elaborada por parte dos desenvolvedores e produtores tal qual foi em 2001 com a criação do selo Marvel Max e a obra original Alias.

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