Luke Cage é o terceiro
personagem da Marvel Comics a ganhar
uma serie própria da Netflix e, como foi nas revistas dos anos 70, é o primeiro
personagem negro de histórias em quadrinhos a ter um título próprio. Esse
fator, por si só, já faz a série se destacar entre os demais, junto com as
musicas, o Harlem e um pouco da cultura Afro-americana, fazem com que Luke Cage
tenha como tema principal não os super-heróis fantasiados, mas a
representatividade negra em vários espectros narrativos.
A série retrata a vida fictícia de
Carl Lucas (Lucas Grant nas HQs originais e ambos alter-egos de Luke Cage) um
ex-presidiário que passou por uma experiência cientifica na ilha-penitenciária
de Seagate em troca da redução de sua pena, mas algo dá “errado” e Luke,
interpretado por Mike Colter que já havia aparecido em Marvel’s Jessica Jones, acaba adquirindo poderes de super força, certo
grau de regeneração e o mais marcante, pele invulnerável a quase qualquer tipo
de ferimento.
Entretanto, Cage não quer se tornar
um super herói, principalmente devido à morte de sua amada Reva Connors,
interpretada por Parisa Fita-Henley, e que também já havia aparecido na série
da Jessica Jones. Assim ele foge da prisão e volta para o bairro do Harlem em
Nova Iorque tentando, infrutiferamente, levar uma vida pacata trabalhando em
uma famosa barbearia do parente da falecida Reva chamado de Henry Hunter, ou
carinhosamente “Pop”, interpretado pelo excelente ator Frankie Faison.
A série marca mais uma parceria do
canal de streaming Netflix com a editora Marvel
Comics e agora tendo o brilhante Cheo Hodari Coker como desenvolvedor, roteirista
e showrunner.
Assim
como nas séries anteriores, Luke Cage também é um personagem de Histórias em
Quadrinhos e foi criado em 1971 por Archie Goodwin, George Tuska e John Romita
sobre as idéias inovadoras de Stan Lee que queria “entrar na onda” dos filmes
do inicio da década de 70 que tinham agora personagens negros, escritos para um
publico negro por diretores e roteiristas negros.
Esse
era o contexto do chamado Blaxsploitation.
A
expressão veio da junção das palavras Black
que significa preto ou negro e Exploitation
que significa exploração, ou seja, Exploração Negra, mas no sentido de
priorizar a comunidade negra dos Estados Unidos como consumidor principalmente de
filmes, mas depois também de séries, livros e até histórias em quadrinhos. Esse
se tornou um movimento com grande apelo e importância, pois os afro-americanos
além de não se sentirem representados pelo cinema da época, os produtores viram
uma chance de explorar toda uma cultura que ainda não tinha sido mostrada a
contento.
Assim
esse inovador estilo já contava com expoentes filmes como Sweet Sweetback de Melvin Van Peebles e Shaft de Gordon Parks, ambos também lançados em 1971 tendo como
inspiração os antigos Race Films e
indo na contra mão da industria hollywoodiana que na época raramente colocava
negros como protagonistas em filmes ou, se colocava, era algo bem longe da
realidade em que viviam os afro-americanos nesse período. Pouco depois o Blaxsploitation passou por uma fase
antropofágica, muito semelhante a escola literária modernista brasileira, que
visava pegar filmes já existentes e colocar protagonistas negros como foi Blácula (1972) de William Crain, The Black Godfather (1974) de John Evans
e O Mágico Inesquecível (1978) de
Sidney Lumet que, esse último, fez muito sucesso na época por contar com a
participação especial de Michael Jackson e era praticamente o Mágico de Oz com personagens negros.
Entretanto,
a questão não era apenas trazer personagens negros como protagonistas ou buscar
atores, autores e diretores afro-descendentes para ter uma melhor
caracterização dessas criações, mas também buscar toda a cultura afro-americana
como contexto e enredo para que assim a comunidade negra finalmente pudesse se
sentir representada no cinema, televisão ou qualquer outra mídia cultural.
Logo
a Marvel Comics, que sempre tentava
se manter atualizada as questões de seu contexto, trouxe na primeira revista de
história em quadrinhos com um negro como personagem principal e tentou não
apenas ter um personagem afro-descendente, mas levar como pano de fundo a
cultura negra dos afro-americanos. Na verdade a empresa já tinha inovado com o
primeiro personagem negro das HQs, o Pantera Negra, mas este, até então,
aparecia como coadjuvante nas revistas do Quarteto Fantástico e por ser
africano não havia uma identificação direta com os leitores dos Estados Unidos.
Assim
Luke Cage vive no Harlem, bairro da cidade de Nova Iorque que nos anos 70
estava abandonado a degradação pelo Estado e embora vivesse no meio de as
gangues criminosas e com criminalidade alarmante. Muitos bairros da periferia
novaiorquina passavam pelos mesmos problemas como o caso do Bronx que também
foi palco de explosões culturais que iniciaram um movimento artístico-cultural
genuinamente afro-americano como o Hip Hop
que acabou trazendo um pouco de paz aos jovens que tentavam fugir da violência
e drogas que os cercavam de todas as maneiras, da mesma maneira que,
tardiamente, se buscou reconstruir o Harlem.
O
Harlem também seria explorado pela série da Netflix quase como um personagem
próprio. A identidade do bairro novaiorquino é trazida de forma ainda mais
marcante que foi trabalhada nas antigas HQs do personagem nos anos 70 e, embora
tenha sido atualizada para os dias de hoje, trás antigas questões como a
reconstrução do bairro e uma apologia a sua própria cultura.
Tudo
isso novamente se entrelaça com o blaxploitation
que a série parece trazer de volta com tantos atores, produtores e diretores
negros bem como trazendo a cultura afro-americana representada pelo Harlem de
maneira natural e sem muitos estereótipos não “denegrindo” ou romantizando
demais os personagens negros que na série figuram tanto como heróis e vilões.
Talvez
esteja na trilha sonora e nas músicas os melhores exemplos da cultura afro-americana
sendo explorada na série, onde cada capítulo é dedicado a uma música ou álbum
famoso que passa por alguns espectros da musica negra estadunidense sendo
representada não apenas pelo Rap,
como geralmente acontece nesses casos, mas também com o Soul, Blues e Jazz. A música não figura apenas como
trilha, mas os cantores e bandas acabam realmente aparecendo na série,
principalmente se apresentando no Harlem’s
Paradise, a boate do vilão Boca de Algodão.
Todos
esses detalhes trazem uma melhor imersão à narrativa da série e faz com que
seja considerada uma das melhores, em termos de produção, desenvolvida pela Netflix para os super heróis da Marvel Comics. São músicas que não
apenas embalam a cenas de drama e ação ou que são apresentadas apenas de forma comumente
reduzida e até banalizada, como é recorrente em muitos filmes e séries. Em Luke
Cage as músicas são apresentadas evidenciando que a cultura negra dos Estados Unidos
é incrivelmente rica e diversificada.
Assim
sendo, a série da Netflix acaba tendo
uma importância enorme e se tornando muito mais que apenas uma adaptação de
super heróis das histórias de quadrinhos da Marvel
Comics. Sua importância se mostra na representatividade, pois não apenas um
garoto negro poderia se identificar melhor pelo personagem ser de sua etnia,
como o Pantera Negra, por exemplo, mas mais que isso, Luke Cage era da
periferia dos Estados Unidos e isso o trazia bem mais próximo do público.
Era
um negro do Harlem vestido com moletom e capuz, que a mídia e a sociedade o
colocaria como estereótipo de bandido, mas aqui Luke era um herói ou parafraseando
o vilão da série, era o Capitão América do Harlem.
Na
mesma forma que os quadrinhos dos anos 70 buscaram uma maior representatividade
negra, a série da Netflix também vai
pelo mesmo caminho buscando além das referencias quadrinísticas, mas tendo a
sensibilidade de entender como esse tema estava em foco nos dias de hoje,
recriando e modernizando a representatividade do blaxsploitation junto a temas mais atuais, talvez esperando ter o
mesmo efeito ocorrido no passado. Um garoto negro pode muito bem sair do cinema
tendo o Capitão América como herói, mas agora poderia ter um herói muito mais
parecido com o jovem também, um protagonista que, como ele, poderia ser
preconceituosamente confundido com um marginal comum andando pelas ruas.
Assim
Luke Cage se torna a alma do Harlem e, apesar de todos os esforços do Boca de
Algodão em desmoralizá-lo, o bairro se identifica com Luke fazendo os episódios
da segunda metade da série sejam vibrantes e servindo como uma alegoria
perfeita para a intenção dos produtores em mostrar a importância e atualidade
da série de modo muito semelhante ao contexto do lançamento dos quadrinhos
originais.
A
busca do proprietário do Harlem’s
Paradise e vilão Stokes, brilhantemente interpretado por Maharshala Ali, em
destruir a imagem moral do herói pode ser a única resposta que o antagonista
tinha de derrotar um Luke indestrutível e muito mais poderoso que ele mesmo.
Faz parte da narrativa construída pelas séries da Netflix onde cada vilão parece ter um foco de ataque, como Fisk
atacou a imagem do Demolidor ou Killgrave agredia psicologicamente a Jessica
Jones, mas no caso do Boca de Algodão o ataque moral se encaixa perfeitamente
na idéia de representatividade e evidencia os preconceitos e tentativa quase
impossível de alguém da periferia viver alheio ao meio de ilicitude e buscar um
caminho mais honesto.
A
representatividade realmente é o foco da série, como deveria ser, e mesmo tendo
um protagonista mulherengo, e assim sendo, de narrativa muitas vezes machista,
temos várias mulheres fortes sendo representadas quase sem os clichês do
gênero. Temos, como exemplo de heroína, uma policial chamada Misty Knight,
interpretada pela Simone Missick, que é honesta em uma corporação corrupta e de
sexualidade bem resolvida; bem como temos a vilã manipuladora e política Mariah
Dillard que encontrou na atriz Alfre Woodard uma interpretação perfeita.
Estão
em todos esses esforços; a música e o tema buscando e modernizando suas origens
bem como toda a homenagem a cultura afro-americana, o que fazem Luke Cage estar
entre as melhores séries da Netflix
e, se não tem uma estória tão envolvente como as outras da parceria com a Marvel, está é a de melhor produção sem
dúvidas. Uma importância social que amarra todo o enredo da mesma forma que
fizeram em Jessica Jones, mas em uma produção ainda mais bem trabalhada e
acertada.
Infelizmente
vários aspectos dos quadrinhos foram esquecidos como fato de Luke ter sido um
Herói de Aluguel, ou seja, oferecendo sua ajuda por um preço. Temos pequenas
referencias a isso na série, mas Luke não chega a atuar como tal. Este fator
pode muito bem ter ocorrido devido à busca pelo foco da representatividade, mas
é triste ver o quanto o personagem poderia ter crescido durante os episódios se
partisse do ponto de cobrar pelo seu auxilio e talvez perto do final ser um
herói sem essas amarras ou apenas nunca exigir pagamento das pessoas do Harlem
como nas HQs. Poderia ser um desenvolvimento que tornaria a primeira metade da
série menos parada e buscaria já uma referencia com a próxima série do Punho de
Ferro, pois esse era o parceiro de Luke nas estórias dos Heróis de Aluguel.
No
entanto, talvez tenhamos que parabenizar e agradecer que os produtores não tenham
usado todas as referencias dos quadrinhos e passado bem longe da fase da Marvel Max do personagem. Embora tenha
sido escrito pelo brilhante roteirista Brian Azzarello, Luke Cage do selo
adulto da Marvel não teve poucas
edições a toa. Arcos cheios de preconceitos de uma periferia estereotipada que
nos traz estórias fracas e com nenhuma intimidade ou reconhecimento com as
comunidades negras estadunidenses. Foi à contramão de tudo que tinha sido
construído com o personagem e devidamente esquecida em revistas posteriores.
Quem sabe a série ter bebido da fonte blaxsploitation
e colocado produtores não apenas negros, mas que entendem da realidade do
Harlem e a revista buscar um ótimo roteirista, mas de outra realidade, não nos
faz refletir ainda mais sobre a importância da representatividade?
Finalmente
temos mais uma ótima série baseada em histórias em quadrinhos; se não pelo
roteiro, mas pela produção e importância; que nos traz bem mais do que combates
e referencias super heróicas, mas questionamentos importantes que tinham tanto
significado nos anos 70 e continuam até hoje martelando sobre a importância da
representatividade e os espaços que os negros têm na cultura pop.